Pense num Big Mac
ou num Burger King Whooper. Ali você tem um hambúrguer cuja carne
“real” é misturada com o chamado “pink slime” (literalmente,
lodo rosa), um processado a base de rejeitos de carne antigamente
usado para fabricação de ração animal, cuja cor é pintada com um
spray vermelho que da a aparência de carne "real". Alem do hambúrguer
você tem ali um queijo. Na verdade, uma imitação de queijo. É o
chamado “queijo americano”, uma fatia de muitos conservantes,
corantes e gordura trans que tem um sabor parecido com o queijo, mas
uma textura bem artificial, uma especie de plastico comestível. Tudo
recheando duas fatias de pão de qualidade duvidosa, fabricado em
serie e com características diferentes de um pão caseiro, como uma
maciez fora do comum e a ausência daquela casca mais grossa. Seria
isso comida de verdade?
Durante um curso
para gerentes de restaurante nos Estados Unidos, participei de uma
experiencia interessante. O instrutor pediu que, com os olhos
vendados, nos provássemos diferentes tipos de alimentos, pensássemos sobre os sabores e descrevêssemos os sabores. Um dos alimentos era um hambúrguer, destes
de McDonalds mesmo. Assim que colocamos o pedaço de hamburger na
boca, podíamos ouvir as pessoas na sala disfarçadamente rejeitando o
alimento que foi dado, cuspindo nos guardanapos. Claro que esse tipo
de sanduíche é o que tem de pior nos restaurantes americanos, o tipo
barato, porem ruim. Mas a questão central aqui é que se você pensa
com atenção no sabor de tudo que come, com certeza muita coisa
seria rejeitada, porque, de fato, não é bom. E, apesar das
diferenças de opiniões e paladares, todos temos uma noção do que é
bom ou ruim se refletirmos bem nos sabores e aromas dos alimentos que
digerimos.
Sei
que este é um tema polemico e, para botar mais lenha na fogueira,
gostaria de citar dois livros. Um, que li há muito atras, é o
Viagem na Irrealidade Cotidiana, onde o autor, Umberto Eco, faz uma
critica ao modelo de fantasia do nosso tempo, em que o “todo
verdadeiro” se identifica com o “todo falso”, como nos exemplos
que ele cita das replicas de mundos na Disney, como os museus
de cera aonde os bonecos tem uma aparência tão próxima ao real que
as pessoas se perdem no meio deles. Uma replica da Casa Branca, por
exemplo, utilizando as mesmas cores e formatos, faz com que a informação histórica assuma um aspecto de reencarnação. Nas palavras
de Eco, “a irrealidade absoluta se oferece como presença real (…)
a ambição
é fornecer um 'signo' que se faça esquecer enquanto tal”.
Ainda
falando sobre o consumo das irrealidades (imitações) pelo homem da
atualidade, Eco nos alerta sobre a massificação
e banalização
da opinião. A nossa geração
é acostumada a receber toda a informação
e a opinião devidamente prontas
e tem muita dificuldade em produzi-las por si próprio. Esta é, alias, uma
via de mão dupla, na medida em que a grande abrangência dos próprios
meios de comunicação,
como a TV aberta, por exemplo, faz com que estas disponibilize a
informação
de forma mais generalizada possível, perdendo a capacidade de focar
e aprofundar os temas, já que precisam se comunicar com uma
variedade muito grande de níveis sociais e graus de instrução.
Um efeito de um conhecimento massificado é a impressão de veracidade que dá
ao homem comum, tao acostumado a ouvir e repetir essa ideia que a tem
por saber demonstrado e seguro.
Outro
livro que joga luz no tema é o “Cerveja e Filosofia”, uma coletânea de artigos em que um deles, escrito por Garret Oliver, da
Brooklyn Brewery, chamado “Matrix
etílica: realidade
versus fac-símile na produção de cerveja”, o autor polemiza ao
falar sobre produtos que são comercializados como se fossem
cervejas, mas não o são. Garret afirma que mesmo um produto que vem
de uma tradição
muito antiga como a cerveja é sujeito a fraude. Assim como o queijo
americano e o pão macio do McDonald's, algo que esta sendo
comercializado como cerveja pode ser apenas um fac-símile, uma copia
da real cerveja.
Ainda
este mês eu conversava com um diretor de uma pequena cervejaria e
ele me contava como uma situação ameaçou o negocio quando um
profissional contratado, com experiencia previa numa grande corporação
do ramo cervejeiro, prometeu baixar os custos misturando uma grande
quantidade de cereais não-maltados no mosto, alem de outras “economias”.
Como é de se esperar, a qualidade da cerveja caiu muito e a empresa
amargou um prejuízo muito grande advindo da perda de clientes. Ora,
entre duas cervejas ralas e sem corpo, qualquer pessoa, por menos
consciente em termos de qualidade que for, preferira ficar com as marcas já
consolidadas no mercado, como uma
Skol, por exemplo. Uma diferença de centavos no preço não afetaria
essa escolha.
Por exemplo,
imaginemos um bebida feita
de cereais não maltados
enzimaticamente convertidos, como milho ou arroz, condimentada com
extrato de lúpulo, filtrada com carvão
vegetal para melhorar o sabor e engarrafada com menos de uma semana
de fermentação. Poderia ser considerada cerveja?
Oliver acredita que não pode. São apenas uma copia do que, no
decorrer da Historia, vem sido chamada de cerveja, assim como a copia do seu RG não é o seu documento de identidade verdadeiro.
Daí
Oliver dizer que muitas pessoas vivem na Matrix da falsa cerveja, onde chegam inclusive a “esquecer” o sabor de uma cerveja de verdade
na medida em que se acostumam com o fac-símile
e a sua mente “apaga” o sabor da cerveja “real”.
A copia alterada para uma produção em serie e
barata faz com que a cerveja perca a essência. Aqui podemos retornar
aos questionamentos de Umberto Eco sobre a banalização dos sentidos
quando alguém reproduz a Mona Lisa para expor a copia num museu
americano. Não é a coisa real, mais o seu decalque, mesmo que a exposição ao objeto “falso” possa de fato confundir os sentidos
menos experientes.
A surpresa e perplexidade que acompanham uma cerveja artesanal é um tributo aos 10 mil anos deste líquido sagrado e existe também uma expectativa em relação a toda esta bagagem histórica.
Se você é um
cervejeiro artesanal, com certeza sabe a sensação de descobrir as mudanças que vão ocorrendo no mesmo lote de cerveja com o passar do
tempo. As diversas reações químicas em diferentes momentos da duração daquele lote da a cada garrafa aberta uma surpresa diferente. Nada
dos sabores padronizados. Mesmo experimentando a mesma marca, mesmo
estilo, mesma receita, os sabores e aromas variam, porque nem tudo no
processo esta sob controle do mestre cervejeiro, a levedura tem vida
e vontades próprias.
Aí
mora toda a beleza desta arte. Cada garrafa é única, como única é
cada experiencia de degustação. Cada garrafa é a MINHA (e só minha)
cerveja.
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