"Sempre que eu leio sobre os males da cerveja, eu paro... de ler!"

"Give a man a beer, he'll waste an hour. Teach a man to brew and he'll waste a lifetime".

domingo, 18 de novembro de 2012

Por uma Filosofia da Cerveja

Pense num Big Mac ou num Burger King Whooper. Ali você tem um hambúrguer cuja carne “real” é misturada com o chamado “pink slime” (literalmente, lodo rosa), um processado a base de rejeitos de carne antigamente usado para fabricação de ração animal, cuja cor é pintada com um spray vermelho que da a aparência de carne "real". Alem do hambúrguer  você tem ali um queijo. Na verdade, uma imitação de queijo. É o chamado “queijo americano”, uma fatia de muitos conservantes, corantes e gordura trans que tem um sabor parecido com o queijo, mas uma textura bem artificial, uma especie de plastico comestível. Tudo recheando duas fatias de pão de qualidade duvidosa, fabricado em serie e com características diferentes de um pão caseiro, como uma maciez fora do comum e a ausência daquela casca mais grossa. Seria isso comida de verdade?

Durante um curso para gerentes de restaurante nos Estados Unidos, participei de uma experiencia interessante. O instrutor pediu que, com os olhos vendados, nos provássemos diferentes tipos de alimentos, pensássemos sobre os sabores e descrevêssemos os sabores. Um dos alimentos era um hambúrguer, destes de McDonalds mesmo. Assim que colocamos o pedaço de hamburger na boca, podíamos ouvir as pessoas na sala disfarçadamente rejeitando o alimento que foi dado, cuspindo nos guardanapos. Claro que esse tipo de sanduíche é o que tem de pior nos restaurantes americanos, o tipo barato, porem ruim. Mas a questão central aqui é que se você pensa com atenção no sabor de tudo que come, com certeza muita coisa seria rejeitada, porque, de fato, não é bom. E, apesar das diferenças de opiniões e paladares, todos temos uma noção do que é bom ou ruim se refletirmos bem nos sabores e aromas dos alimentos que digerimos.

Sei que este é um tema polemico e, para botar mais lenha na fogueira, gostaria de citar dois livros. Um, que li há muito atras, é o Viagem na Irrealidade Cotidiana, onde o autor, Umberto Eco, faz uma critica ao modelo de fantasia do nosso tempo, em que o “todo verdadeiro” se identifica com o “todo falso”, como nos exemplos que ele cita das replicas de mundos na Disney, como os museus de cera aonde os bonecos tem uma aparência tão próxima ao real que as pessoas se perdem no meio deles. Uma replica da Casa Branca, por exemplo, utilizando as mesmas cores e formatos, faz com que a informação histórica assuma um aspecto de reencarnação. Nas palavras de Eco, “a irrealidade absoluta se oferece como presença real (…) a ambição é fornecer um 'signo' que se faça esquecer enquanto tal”.

Ainda falando sobre o consumo das irrealidades (imitações) pelo homem da atualidade, Eco nos alerta sobre a massificação e banalização da opinião. A nossa geração é acostumada a receber toda a informação e a opinião devidamente prontas e tem muita dificuldade em produzi-las por si próprio. Esta é, alias, uma via de mão dupla, na medida em que a grande abrangência dos próprios meios de comunicação, como a TV aberta, por exemplo, faz com que estas disponibilize a informação de forma mais generalizada possível, perdendo a capacidade de focar e aprofundar os temas, já que precisam se comunicar com uma variedade muito grande de níveis sociais e graus de instrução. Um efeito de um conhecimento massificado é a impressão de veracidade que dá ao homem comum, tao acostumado a ouvir e repetir essa ideia que a tem por saber demonstrado e seguro.

Outro livro que joga luz no tema é o “Cerveja e Filosofia”, uma coletânea de artigos em que um deles, escrito por Garret Oliver, da Brooklyn Brewery, chamado “Matrix etílica: realidade versus fac-símile na produção de cerveja”, o autor polemiza ao falar sobre produtos que são comercializados como se fossem cervejas, mas não o são. Garret afirma que mesmo um produto que vem de uma tradição muito antiga como a cerveja é sujeito a fraude. Assim como o queijo americano e o pão macio do McDonald's, algo que esta sendo comercializado como cerveja pode ser apenas um fac-símile, uma copia da real cerveja.

Ainda este mês eu conversava com um diretor de uma pequena cervejaria e ele me contava como uma situação ameaçou o negocio quando um profissional contratado, com experiencia previa numa grande corporação do ramo cervejeiro, prometeu baixar os custos misturando uma grande quantidade de cereais não-maltados no mosto, alem de outras “economias”. Como é de se esperar, a qualidade da cerveja caiu muito e a empresa amargou um prejuízo muito grande advindo da perda de clientes. Ora, entre duas cervejas ralas e sem corpo, qualquer pessoa, por menos consciente em termos de qualidade que for, preferira ficar com as marcas já consolidadas no mercado, como uma Skol, por exemplo. Uma diferença de centavos no preço não afetaria essa escolha.

Por exemplo, imaginemos um bebida feita de cereais não maltados enzimaticamente convertidos, como milho ou arroz, condimentada com extrato de lúpulo, filtrada com carvão vegetal para melhorar o sabor e engarrafada com menos de uma semana de fermentação. Poderia ser considerada cerveja? Oliver acredita que não pode. São apenas uma copia do que, no decorrer da Historia, vem sido chamada de cerveja, assim como a copia do seu RG não é o seu documento de identidade verdadeiro.

Daí Oliver dizer que muitas pessoas vivem na Matrix da falsa cerveja, onde chegam inclusive a “esquecer” o sabor de uma cerveja de verdade na medida em que se acostumam com o fac-símile e a sua mente “apaga” o sabor da cerveja “real”.

A copia alterada para uma produção em serie e barata faz com que a cerveja perca a essência. Aqui podemos retornar aos questionamentos de Umberto Eco sobre a banalização dos sentidos quando alguém reproduz a Mona Lisa para expor a copia num museu americano. Não é a coisa real, mais o seu decalque, mesmo que a exposição ao objeto “falso” possa de fato confundir os sentidos menos experientes. 

A surpresa e perplexidade que acompanham uma cerveja artesanal é um tributo aos 10 mil anos deste líquido sagrado e existe também uma expectativa em relação a toda esta bagagem histórica

Se você é um cervejeiro artesanal, com certeza sabe a sensação de descobrir as mudanças que vão ocorrendo no mesmo lote de cerveja com o passar do tempo. As diversas reações  químicas em diferentes momentos da duração daquele lote da a cada garrafa aberta uma surpresa diferente. Nada dos sabores padronizados. Mesmo experimentando a mesma marca, mesmo estilo, mesma receita, os sabores e aromas variam, porque nem tudo no processo esta sob controle do mestre cervejeiro, a levedura tem vida e vontades próprias. Aí mora toda a beleza desta arte. Cada garrafa é única, como única é cada experiencia de degustação. Cada garrafa é a MINHA (e só minha) cerveja.

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